Eu gosto muito dos contos de Clarice Lispector, do seu estilo narrativo, da introspecção, da valorização dos sentimentos das personagens, do uso de técnicas como o fluxo de consciência, da epifania que, por tabela, nós experienciamos nas suas narrativas.
Mas, em “Felicidade Clandestina”, um dos contos de Clarice mais conhecidos, mais difundidos em ambiente escolar, há uma palavra que me incomoda profundamente, uma palavra que, se hoje estivesse revisando o texto, aconselharia a escritora a deletar.
Felicidade Clandestina é narrado em primeira pessoa e tem no centro da narrativa duas garotas, sem nome. As personagens são construídas em oposição. A protagonista, apaixonada por livros e sem dinheiro para adquiri-los, é a “bonitinha”, já a outra, cruel, vingativa, mas “filha do dono da livraria”, é o seu oposto: “ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos”. É por meio dessa descrição que o texto é aberto e é exatamente nesse trecho que aparece a palavra incômoda, marca de um tempo: EXCESSIVAMENTE.
Toda vez que leio esse texto, questiono mentalmente: o que é um cabelo excessivamente crespo? Excessivamente é um advérbio que significa “de maneira exagerada”. Então, haveria um limite aceitável de, digamos, “crespismo” (nem sei se essa palavra existe) para um cabelo?
Destaco que essa característica da personagem se apresenta em oposição à descrição da protagonista-narradora do conto que, assim como as outras meninas, tinha “cabelos livres”. Essa oposição, deduz a narradora, seria a fonte do ódio da “filha do dono da livraria”: “Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinha, de cabelos livres”.
Deixo claro o que é óbvio, mas que precisa ser enfatizado: sou leitora do MEU tempo e Clarice é escritora do tempo DELA. Hoje, do meu lugar, enxergo o “excessivamente crespos” como uma frase que reforça preconceitos. “A filha do dono da livraria” não era negra e sim ruiva, mas carregava em si uma característica típica de afrodescendentes e que, ainda hoje, mesmo com a valorização dos cabelos crespos e cacheados pela indústria, é fonte de ataques: “meu cabelo é bom ou meu cabelo é ruim”, cresci ouvindo isso.
Lendo o conto, penso que essa leitura, colocada na fala da narradora, reverbera, implicitamente, o pensamento da própria “menina cruel” e, de maneira mais ampla, o pensamento da própria sociedade da década de 1960, na qual o texto foi escrito. Contudo, novamente me colocando no único papel em que posso estar, o de leitora do meu tempo, não percebo nenhuma intenção de denúncia no texto, que foca em outras coisas, na relação erótica da narradora com o livro, em questões de diferenças de classes sociais, etc.
Sei que a questão é complexa e delicada e envolve polêmicas literárias sobre preconceito/racismo (o caso de Monteiro Lobato é exemplar), mas, por hora, minha intenção é apenas a de externar uma coisa que há muito me incomoda, num texto do qual gosto, e sobre o que ainda não ouvi ninguém falar. Deixo para os acadêmicos o seu aprofundamento.