Bertrand Lira (de Cannes, França)
Mal vivenciamos o estrondoso sucesso de ‘Ainda estou aqui’, de Walter Salles, o cinema brasileiro volta sua narrativa para um momento perverso de nossa história: a Ditadura Militar, desta vez através de um professor universitário especializado em tecnologia, Marcelo (Wagner Moura). Embora com ideias que o caracterizam como uma pessoa de esquerda, Marcelo não é um militante como costumamos definir. A história se a no ano de 1977, dois anos antes do início da abertura política “lenta, gradual e segura” anunciada pelos milicos.
O filme estreou mundialmente no 78º Festival de Cinema de Cannes esta semana sob intenso aplauso e reconhecimento da crítica. Como ‘Ainda estou aqui’, o filme de Kleber Mendonça Filho conduz sua narrativa tendo um personagem protagonista como fio condutor, no entanto, acrescenta uma gama de personagens secundários que enriquece e aprofunda a trama tecendo um extraordinário e fiel retrato do Brasil dos anos da repressão, particularmente da cidade do Recife com suas manifestações culturais e costumes.
Apesar da excelente performance de Wagner Moura, em dois papeis (pai e filho), os demais personagens não se apagam, ao contrário, cada um, a seu modo, colore a trama com suas ações e atuações singulares. E aqui destaco a atriz Tania Maria como a histriônica Dona Sebastiana, que abriga clandestinos em risco com a Ditadura. Ameaçado por recusar a aceitar a participação corrupta de um empresário num projeto de tecnologia de ponta, Marcelo é obrigado a voltar clandestinamente à sua Recife natal onde encontra seu filho criança que vive com os avós maternos.
O diretor Kleber Mendonça de ‘O som ao redor’, ‘Aquarius’, ‘Críticos’,’ Bacurau’, ‘Retratos Fantasmas’ crias uma história ficcional que registra documentalmente o Brasil dos anos 70 através da cidade do Recife, com sua paisagem, fatos reais e lendas urbanas. Os recentes ataques de tubarão nas últimas duas décadas inexistente no tempo que a história abrange, volta como uma metáfora mórbida do terror dos corpos mutilados na repressão militar. E, ao mesmo tempo, como uma lenda urbana da “perna cabeluda” presente nas narrativas sensacionalista de alguns jornais. No filme, uma perna é retirada do estômago de um tubarão.
‘O agente secreto’ já inicia anunciando o horror do Brasil sob a tutela dos militares que conduzirá toda a sua narrativa. Na primeira cena, na chegada de Marcelo (Wagner Moura) a Pernambuco, nos deparamos com um cadáver semicoberto com papelão assediado por moscas e cachorros famintos. O frentista (o paraibano Joalisson Cunha) explica para o estupefato Marcelo o ocorrido. A polícia chega dias depois do ocorrido e assedia o recém-chegado vasculhando ofusca do viajante.
O horror continua através do balanço de morte nas manchetes dos jornais durante o carnaval que, seguramente, não se refere somente a assassinatos devido à folia. Quantos corpos torturados, mutilados e desaparecidos na intervenção nefasta regada à corrupção e arbítrio naquela noite que durou 21 anos? Através dos ataques do tubarão (inclusive com referência ao filme hollywoodiano), Kleber Mendonça antecipa no seu filme o desequilíbrio ambiental o que aconteceria décadas depois na Recife de hoje.
A homenagem ao cinema não para por aí: a pelo Cine São Luís, cenário de várias cenas, menção a uma antiga sala transformada numa clínica, a cena na tela de um outro filme chamado ‘O agente Secreto’, e talvez uma referência proposital ao gênero de terror trash com a perna cabeluda que sai atacando pessoas em parques e vias do Recife. Curiosamente essa perna assassina, engolida por um tubarão, faz parte de uma lenda urbana da cidade.
Tudo isso dosado de forma a fisgar o espectador através de uma abordagem política do terror que representou ditadura, da crítica social através da menção indireta a uma tragédia recente (a queda de um garoto do alto de uma torre residencial da capital pernambucana, filho de uma empregada doméstica que foi privada do cuidado do filho para ear com os cachorros da patroa, aqui interpretada pela paraibana Cely Farias). Com “O agente secreto’ Kleber Mendonça Filho consolida uma carreira de cinco curtas e seis longas-metragens, tornado-se o cineasta brasileiro de maior prestígio na atualidade.